domingo, 16 de outubro de 2011

Nem tudo que reluz é ouro... SAM - by Fábio Soares


A obstrução dinâmica da via de saída do ventrículo esquerdo é um fenômeno tradicionalmente associado à cardiomiopatia hipertrófica obstrutiva, mas pode ocorrer em outras situações clínicas, como o infarto agudo do miocárdio.

Este é um relato de caso que merece ser lido: Revista Portuguesa de Cardiologia 2010; 29 (04): 711-16

Doente de 72 anos, sexo feminino, caucasiana, com antecedentes de hipercolesterolemia e “bronquite asmática”, recorreu ao Serviço de Urgência (SU) após dois episódios de síncope, que a doente relacionava com situação de stress emocional intenso, negando ter tido dor torácica.

Ao exame objectivo, salientava-se a existência de hipotensão (pressão arterial (PA): 90/50mmHg), taquicardia (frequência cardíaca (FC): 125 batimentos por minuto (bpm) e um sopro sistólico II/VI no bordo esquerdo do esterno, sem frémito. O ECG efectuado na admissão no SU mostrava ritmo sinusal com FC de 80 bpm e ondas T bifásicas em dII, V2 e V3 e negativas e simétricas de V4 a V6.

Laboratorialmente, verificou-se elevação da trponina T (0,25g/L - VN<0,01), (CK) (198UI/L, VN< 170) e do NT-proBNP (5229pg/mL, normal < 334). O ecocardiograma efetuado na admissão revelava acinesia dos segmentos médio-apicais do ventrículo esquerdo, e SAM da VM com GIV significativo associado a insuficiência mitral (IM) moderada, pelo que foi administrado beta-bloqueador endovenoso, tendo ocorrido rápida resolução da obstrução da VSVE.



 
O diagnóstico de OTSVE dinâmica deve ser considerado em doentes com sintomas e ECG compatíveis com síndrome coronária aguda, sopro sistólico, e hipotensão (que pode ser grave), com uma elevação ligeira dos MNM. O fato de se tratar de uma doente na pós-menopausa, o surgimento da sintomatologia após stress emocional intenso e a existência de acinesia dos segmentos médio-apicais do ventrículo esquerdo (VE) obrigava a que se fizesse o diagnóstico diferencial com miocardiopatia tako-tsubo,  diagnóstico que se excluiu neste caso por se ter demonstrado a existência de doença coronária obstrutiva. A ecocardiografia transtorácica é o método de eleição para o diagnóstico desta situação, devendo-se efectuar ecocardiograma transesofágico se as imagens por via transtorácica forem de má qualidade. Além disso, a ecocardiografia permite a exclusão de complicações mecânicas como causa de sopro e hipotensão no contexto de EAM (comunicação interventricular, insuficiência mitral aguda por ruptura de músculo papilar, ruptura de parede livre do VE). A ocorrência de OTSVE dinâmica no contexto de síndrome coronária aguda é muito provavelmente devida a enfarte apical com hipercinésia compensatória dos segmentos basais, que resulta numa diminuição da área do tracto de saída do ventículo esquerdo (TSVE), resultando numa aceleração do fluxo através do TSVE.
Isto pode criar um efeito de Venturi, em que o fluxo acelerado diminui a pressão sobre a VM e depois “tracciona” o folheto anterior da VM em direcção ao septo interventricular, aumentando a OTSVE. A terapêutica vasodilatadora utilizada habitualmente nos doentes com EAM pode aumentar o gradiente, e conduzir a agravamento clínico. Os vasodilatadores, com a redução da pós-carga e eventualmente da pré-carga, e os fármacos inotrópicos devem ser evitados neste contexto. São úteis nestes doentes os beta-bloqueadores e os alfa-agonistas, aqueles porque, ao diminuírem a hipercinéeia dos segmentos basais, podem diminuir o GIV, e estes porque, ao aumentarem a resistência arteriolar sistémica, provocam um aumento dos volumes tele-sistólico e tele-diastólico do VE, donde resulta um aumento das dimensões do TSVE, diminuindo o GIV. É de salientar que, segundo a actualização de 2007 das recomendações americanas de 2004 para a abordagem dos doentes com enfarte com supradesnivelamento do segmento ST, o uso de -bloqueantes por via endovenosa está contra-indicado nos doentes com sinais de insuficiência cardíaca ou de baixo débito, risco aumentado de desenvolvimento de choque cardiogénico (idade superior a 70 anos,PA sistólica inferior a 120mmHg, taquicardia sinusal com FC superior a 110bpm ou FC inferior a 60bpm e tempo prolongado desde o início da sintomatologia) ou outras contraindicações relativas para a terapêutica com - bloqueantes (intervalo PQ superior a 0,24 segundos, bloqueio aurículo-ventricular de segundo ou terceiro graus, asma brônquica ou hiperreactividade das vias aéreas). Assim, a existência de OTSVE dinâmica deve ser pesquisada por ecocardiografia, pois a ocorrência deste fenómeno requer terapêutica específica, para evitar o agravamento do GIV e a deterioração clínica do doente.

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